Jaime Zuzarte Cortesão (por Elisa Neves Travessa)
Jaime Cortesão (Ançã/Cantanhede, 29-4-1884 – Lisboa, 14-8-1960) foi um intelectual que, privilegiando concomitantemente a investigação, a reflexão e a acção, ocupou um lugar proeminente na cultura política e na cultura histórica do seu tempo, sobretudo pela afirmação de um duplo combate – político e de reavivar a consciência histórica e cívica – presente na produção escrita e na acção cultural e cívica. O impulso dinamizador e o sentido da convergência foram os traços mais característicos da sua personalidade. Foi sobretudo um «polarizador de doutrina», um «catalisador» de ideias, como o definiu Aquilino Ribeiro, mais «congraçador» do que «hostilizador dos homens», como o considerou José Rodrigues Miguéis.
A partir da compreensão do universo mental e moral do autor e das múltiplas facetas da sua obra e da sua acção – enquanto poeta, dramaturgo, ficcionista, pedagogo, político e historiador – percebemos que compatibilizou a reflexão com a intervenção crítica activa, no contexto convulsionado do Portugal da I República, da Ditadura Militar e do Estado Novo. Desde o início da sua vida pública definiu uma linha de orientação e acção que permaneceu, no essencial, como matriz medular estruturante, ao longo do seu itinerário: a consciência indelével das responsabilidades inerentes ao seu estatuto social e intelectual de intervenção no curso dos acontecimentos, pela palavra e pela acção, com o propósito inviolável de estimular a formação de cidadãos activos, conscientes, críticos e intervenientes, ou seja, sem descurar o exercício de uma pedagogia cívica responsável e pertinente.
A indecisão na escolha da sua formação académica, que se manifesta no longo percurso pelo ensino superior (de 1898 a 1910) e pela frequência de diversos cursos (em Coimbra, Porto e Lisboa), não se define por uma ausência de convicções, antes como uma procura incessante de intervir no real e um prenúncio claro do seu percurso multiforme e da assumpção do polígrafo. Após a frequência do curso de Medicina, na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, conclui a sua formação em Lisboa com a apresentação da tese licenciatura – A Arte e a Medicina. Antero de Quental e Sousa Martins (1910) – em que contesta, no essencial, a teoria de Sousa Martins sobre Antero. As reflexões que esboça nesta obra remetem para a crítica ao cientismo naturalista, à visão determinista dos fenómenos sociais e humanos, ao materialismo, ao determinismo fatalista, ao positivismo, e, por outro lado, expressam a empatia e a admiração pelo «divino Antero», a elevação vitalista e heróica da Arte, fundamentalmente da Poesia, a crença no «idealismo», na «livre metafísica» e numa «vasta e individualizada religiosidade». Cortesão exerceu durante muito pouco tempo Medicina, talvez porque o recurso à vida clínica, diria a Pascoaes em 1913, importaria a «morte moral» e a anulação das suas mais íntimas ambições: as «ambições de Artista».
O sentimento poético e a vocação para a escrita da poesia emergem durante os conturbados tempos de estudante em Coimbra e no Porto e, embora a sua produção seja mais intensa nos primeiros anos da República, a presença do Poeta será uma constante na produção literária e histórica, bem como na intensa actividade cívica. Antes do seu primeiro, e mais conhecido, livro de poesia – A Morte da Águia (1910), poema heróico – Cortesão publica algumas composições poéticas em periódicos de Coimbra e do Porto, sendo destacar a sua colaboração na Nova Silva (1907), revista que evidencia tendências anarquistas, libertárias e anticlericais e da qual foi fundador com Leonardo Coimbra, Álvaro Pinto e Cláudio Basto. As suas poesias surgem, na generalidade, imbuídas de panteísmo, romantismo, religiosidade, misticismo naturalista e de espiritualismo, inserem-se no movimento literário do Saudosismo, pela confluência de contrastes, sentimentos e ideais, forma de expressão e de estilo, mas integram um elemento que as singulariza, como assinalou Fernando Pessoa: o impulso/dinamismo heróico. A mesma tendência se esboça na escrita dos seus dramas históricos – O Infante de Sagres (1916) e Egas Moniz (1918) – e em Adão e Eva (1921), que ilustra o ambiente convulsionado do Portugal da pós-guerra. Neles se encontra subjacente o objectivo pragmático que atribui à produção dramática, como «instrumento de educação popular», moral e cívica colocado «ao serviço do ressurgimento heróico de Portugal».
O ambiente de pessimismo finissecular, a consciência da decadência do presente, a necessidade do exercício de uma pedagogia cívica activa e moralizadora, determinam o envolvimento de Cortesão em projectos de intervenção cívica, educativa e cultural: a Renascença Portuguesa (1912) e, em moldes diferentes e noutro contexto, a Seara Nova (1921), com Raul Proença e Câmara Reis, entre outros. No primeiro deles, o «profeta dessa ideia» procurava, em conjunto com uma plêiade de intelectuais e artistas, despertar a vontade adormecida ou paralisada pelo cepticismo e por sentimentos decadentistas, num esforço colectivo que pudesse dar à revolução republicana um «conteúdo renovador e fecundo», possibilitasse a revivescência da Pátria e a revelação do carácter nacional. No seio deste projecto, que fez d’A Águia o seu órgão (dando-lhe «uma feição orientadora, educativa e crítica»), manifestavam-se as divergências e a comunhão com António Sérgio e Raul Proença que recusavam a filiação exclusiva do movimento no Saudosismo, como pretendia Teixeira de Pascoaes. A intransigência deste último determinou o afastamento de ambos do movimento. Cortesão adopta uma atitude conciliadora, para que as posições dos representantes de uma «ala de renascentes» – Proença e Sérgio – não inviabilizassem a concretização do ideal supremo de congregação e consensualização de vontades, com vista à renovação cultural e moral da nação. Ainda que filiando-se no «saudosismo prospectivo» de Pascoaes, Cortesão define-se como «poeta da acção» e procura dinamizar no movimento projectos pedagógicos, numa acção idealista, voluntarista, altruísta e educativa, fundando as Universidades Populares e a revista A Vida Portuguesa (1912-1915), da qual foi director e onde mantém uma acesa polémica com António Sérgio, vislumbrando o que os separava em relação à ideia de história e à própria função da Renascença. A Seara Nova, embora considerada por Cortesão como «a renascença da Renascença», pressupunha uma orientação muito mais interveniente na vida política, alicerçada na consciência da crise moral vigente. Propunha-se «renovar a mentalidade da elite portuguesa», capaz de auxiliar na formação de «uma opinião pública consciente, clamorosa, insofismavelmente imperativa»; promover o desenvolvimento de um vasto e completo plano de reformas da sociedade e das mentalidades que, para Cortesão, deveriam concomitantemente partir da resolução de dois problemas básicos: o educativo e o económico, apresentando como solução imediata a formação de um governo de competências nessas áreas fundamentais. Nos anos da Seara Nova o valor do estudo do heróico passado nacional mantém-se, mas surge vinculado à disciplina interior e crítica, à reflexão e introspecção, activando a inata capacidade do homem para ascender à perfeição, de herança iluminista, como concretiza nas Cartas à Mocidade (1921-1940). Já não considera, como nos tempos da Renascença (então em confronto com Sérgio), que o estrangeirismo fosse causa da decadência, capaz de desvirtuar a identidade portuguesa. Privilegia agora a urgência de educar «para e pelo trabalho» e, ainda, a necessidade da reforma da educação considerar a assimilação de ideias do exterior, para que Portugal reintegrasse a «elite da Humanidade, à qual durante os séculos XV e XVI pertenceu».
O pensamento político de Jaime Cortesão parte da simpatia pelas ideias anarquistas, libertárias e altruístas, tal como eram defendidas por outros académicos e publicistas, e que se vislumbra pela colaboração em revistas como a Nova Silva (1907) e A Vida (1909), pela dinamização do grupo dos Amigos do ABC e pela participação activa no movimento académico de forte contestação às práticas de ensino vigentes, despoletado em Coimbra em 1907. Defensor incondicional do republicanismo democrático, do igualitarismo reformista e idealista, em que a missão das elites surge continuamente afirmada, Cortesão, que ingressou na Maçonaria em 1911, participou activamente na propaganda republicana e, uma vez consumada a mudança política, empenhou-se na efectiva democratização do regime e das consciências. Este combate fez-se no seio dos movimentos e projectos de acção cívica e educativa mas não excluiu a intervenção política directa: no movimento revolucionário de 14 de Maio de 1915; na propaganda intervencionista [dirigindo o diário democrático O Norte (1914-15), redigindo A Cartilha do Povo (1916) e participando na I Grande Guerra, como capitão-médico voluntário (Memórias da Grande Guerra, 1919)]; na eleição como deputado pelo Partido Democrático de Afonso Costa, em 1915, do qual se afasta, em 1917, propondo a formação de um governo nacional com representação de todas as forças políticas (mais tarde, na Seara Nova, sugere a formação de um governo de competências e, em conjunto com outros seareiros, o recurso a uma «governação excepcional», de carácter transitório e reformador); na luta contra o Sidonismo e as sublevações monárquicas (Escalada de Monsanto – 1919).
Embora no final da Grande Guerra adopte um posicionamento apartidário, próximo de Sérgio e Proença, nunca deixou de assumir uma postura crítica, de vigilância e exigência, face ao poder político, como se pode entrever pelos artigos que publica na Seara Nova, pela sua intervenção no Grupo de Propaganda e Acção Republicana (1922) e na União Cívica (1923). A actividade política, tendo com esteio fundamental a imperiosa e indelével revolução cultural, moral e espiritual, na linha de Antero (veja-se o seu drama Adão e Eva e a polémica com Rodrigues Miguéis, nos inícios dos anos 30, em conjunto com Proença e Sérgio), prossegue com a participação activa na tentativa revolucionária de Fevereiro de 1927, que lhe valeu a demissão do cargo de director da Biblioteca Nacional, que exercia desde 1919 em estreita colaboração com Raul Proença, e a partida forçada para o exílio.
Em França e em Espanha até 1940 (ano em que regressa a Portugal, tendo sido preso em Peniche e no Aljube), e depois no Brasil até 1957, Cortesão empenha-se em dois combates, nunca relegando a responsabilidade cívica, moral e intelectual: 1º– a luta pelo restabelecimento da democracia em Portugal, lutando veementemente contra a Ditadura Militar e o Estado Novo [assim foi em França, com a activa participação na Liga de Paris, 1927-1930; em Espanha, a partir de 1931, com a dinamização do grupo de emigrados republicanos oposicionistas – Grupo dos Budas; e no Brasil com outras figuras da oposição democrática: Jaime de Morais, Moura Pinto e Sarmento Pimentel]; 2º– a prossecução da investigação e produção histórica, que já havia iniciado em Portugal, publicando estudos autónomos, colaborando em diversas publicações periódicas e em importantes empreendimentos colectivos (História do Regime Republicano em Portugal, 1929; História de Portugal, 1931-1934; História da Expansão Portuguesa no Mundo, 1940). A liberdade de acção e as afinidades históricas, culturais e linguísticas com o Brasil, permitem-lhe, a par da actividade conspirativa e oposicionista, um aprofundamento e alargamento dos estudos relacionados com a história da expansão portuguesa, com destaque para o Brasil colonial. O interesse pela história, que se radica nos inícios da sua vida pública, corresponde a uma exigência cívica, alicerçada na ideia de história enquanto lição de moral, mestra da vida (Cícero), adquirindo um propósito moralizante e pragmático; enquanto arte (Oliveira Martins e Fidelino Figueiredo), procurando e realizando «a verdade por meio da imaginação construtiva»; e, ainda, enquanto «escola de formação moral», capaz de, pelos exemplos cívicos e morais a vulgarizar, «extrair do passado as premissas do futuro, transformando-as numa regra de vida». Na escrita da história, sobretudo a partir do final da segunda década do século XX, revela-se um progressivo esforço reflexivo de interrogação e crítica, encarando a história como uma exigência de pesquisa fundamentada, que supera (embora não anule) o universo de divulgação com intencionalidade doutrinária e pragmática. A vinculação inicial à teoria do romantismo heróico de Carlyle, que mais tarde reformulará, bem como o recurso ao lendário, a necessidade de regeneração pela educação, a partir de uma «ensimesmação na história», no heróico passado nacional, conferindo ao ensino uma orientação nacionalizadora, percorrem a obra do pedagogo e do historiador, sem que comprometa a sua fidelidade à verdade e ao rigor em história, a sua «irrepreensível seriedade intelectual» (Jacinto Batista). Da sua vasta produção histórica, com enfoque nos Descobrimentos Portugueses, cuja fase mais produtiva ocorre no exílio, destacam-se como contributos inovadores: a abrangência de uma diversidade de factores no estudo da formação de Portugal e no início da expansão; a abordagem pluridisciplinar dos fenómenos históricos; a síntese crítica e a visão de conjunto que apresentou da expansão e da colonização portuguesas; as teses que formulou e as hipóteses que levantou, retomando alguns dos tópicos mais polémicos da historiografia portuguesa oitocentista sobre os Descobrimentos, permitindo o relançamento do debate e por ele a contestação, mas também a reformulação, ampliação e renovação dos estudos históricos sobre este período.
No Brasil colabora em diversos periódicos, realiza inúmeras conferências, rege cursos em algumas universidades brasileiras e é encarregue da organização da Exposição Histórica comemorativa do IV Centenário da cidade de São Paulo (1954). Aquando do seu regresso definitivo a Portugal, em 1957, prossegue o combate cívico pelo restabelecimento da legalidade democrática, colabora no Directório Democrático-Social, tendo o seu nome sido indigitado para candidato da oposição à Presidência da República, convite que declinou (como antes havia recusado assumir outros cargos políticos, num curioso jogo de sugestão mútua com António Sérgio), envolve-se na campanha de Humberto Delgado, é preso pela última vez em 1958 (com António Sérgio, Vieira de Almeida e Azevedo Gomes), ano em que foi eleito presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores. A exigência de cultivar e elevar o sentimento patriótico e a necessidade de alimentar a memória histórica e a consciência nacional percorrem o espírito de Cortesão, fundamentam o seu discurso pedagógico e moral e constituem uma exigência cívica. A coerência do seu percurso é marcada pela constante incorporação destes sentimentos e ideias. O que o singulariza? É a forma como a consciência histórica, o conhecimento do passado, determinou a sua conduta cívica e a forma como se integrou na sociedade do seu tempo. O que permanece, ao longo da sua vivência pública, é uma exigência e um ideal de cidadania activa e imperativamente interveniente que o levaram a «militar e participar da luta em todos os campos, não excluindo o político». Esta consciência moral e histórica revê-se na prática de uma pedagogia cívica, imbuída de um imperativo ético e de exigência moral e altruísta, empenhada na formação moral e cívica dos cidadãos, como condição essencial da revitalização da identidade nacional e da democratização efectiva do regime republicano.
Fonte : Instituto Camões